Lendas Gaúchas
Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia. Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria. Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições... Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando semver as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes. Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para abter na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro! E a noite velha ia andando... ia andando... Minto: No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol eque vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já... Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero-quero! - tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia se aguentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas. Fora disto, tudo omais era silêncio; e de movimento, então, nem nada. Minto: Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d'alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d'água que levou um tempão a cair, e durou... e durou... Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fias coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d'água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E eram terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!... Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos. E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a - boiguaçu- que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando. Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer carniça. Mas só comia os olhos e nada, nada mais. A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia. Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu. A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagualnem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços!... Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu. Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, guardavam, entrenhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos - tantos, tanto! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada... E vai, Como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareando pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram sendo esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos. Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra do fogo, boitatá, a boitatá! E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como o bombeiro. E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente - tatá, de fogo- que media mais braças que três laços de conta e ia aluminando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam... Mas, como dizia: na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite. Passado um tempo, a boitatá morreu: de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas lhe não deram substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos... Depois de rebolar rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez. E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo! Minto: apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no coloreado do céu; depois se foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir um rastro de luz..., depois a metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre. Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo; só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu. Anda arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada. Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário. A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! -, empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!... É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manatiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito! Maldito! Tesconjuro! Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertado e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o láco, fazer uma armada grande e atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa! A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda. Campeiro precatado! Reponte o seu gado de querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste... Tenho visto!
No tempo dos escravos, havia um estancieiro muito ruim, que levava tudo por diante, a grito e a relho. Naqueles fins de mundo, fazia o que bem entendia, sem dar satisfação a ninguém. Entre os escravos da estância, havia um negrinho, encarregado do pastoreio de alguns animais, coisa muito comum nos tempos em que os campos de estância não conheciam cerca de arame; quando muito alguma cerca de pedra erguida pelos próprios escravos, que não podiam ficar parados, para não pensar bobagem... No mais, os limites dos campos eram aqueles colocados por Deus Nosso Senhor: rios, cerros, lagoas. Pois de uma feita o pobre negrinho, que já vivia as maiores judiarias às mãos do patrão, perdeu um animal no pastoreio. Prá quê! Apanhou uma barbaridade atado a um palanque e depois, cai-caindo, ainda foi mandado procurar o animal extraviado. Como a noite vinha chegando, ele agarrou um toquinho de vela e uns avios de fogo, com fumo e tudo e saiu campeando. Mas nada! O toquinho acabou, o dia veio chegando e ele teve que voltar para a estância. Então foi outra vez atado ao palanque e desta vez apanhou tanto que morreu, ou pareceu morrer. Vai daí, o patrão mandou abrir a "panela" de um formigueiro e atirar lá dentro, de qualquer jeito, o pequeno corpo do negrinho, todo lanhado de laçaço e banhando em sangue. No outro dia, o patrão foi com a peonada e os escravos ver o formigueiro. Qual não é a sua surpresa ao ver o negrinho do pastoreio vivo e contente, ao lado do animal perdido. Desde aí o Negrinho do Pastoreio ficou sendo o achador das coisas extraviadas. E não cobra muito: basta acender um toquinho de vela ou atirar num cano qualquer naco de fumo.
No tempo dos padres jesuítas, existia um moço sacristão no Povo de Santo Tomé, na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Ele morava numa cela de pedra nos fundos da própria igreja, na praça principal da aldeia. Ora, num verão mui forte, com um sol de rachar, ele não conseguiu dormir a sesta. Vai então, levantou-se, assoleado e foi até a beira da lagoa refrescar-se. Levava consigo uma guampa, que usava como copo. Coisa estranha: a lagoa toda fervia e largava um vapor sufocante e qual não é a surpresa do sacristão ao ver sair d'água a própria Teiniaguá, na forma de uma lagartixa com a cabeça de fogo, colorada como um carbúnculo. Ele, homem religioso, sabia que a Teiniaguá - os padres diziam isso!- tinha partes com o Diabo Vermelho, o Anhangá-Pitã, que tentava os homens e arrastava todos para o inferno. Mas sabia também que a Teiniaguá era mulher, uma princesa moura encantada jamais tocada por homem. Aquele pelo qual se apaixonasse seria feliz para sempre. Assim, num gesto rápido, aprisionou a Teiniagá na guampa e voltou correndo para a igreja, sem se importar com o calor. Passou o dia inteiro metido na cela, inquieto, louco que chegasse a noite. Quando as sombras finalmente desceram sobre a aldeia, ele não se sofreu: destampou a guampa para ver a Teiniaguá. Aí, o milagre: a Teiniaguá se transformou na princesa moura, que sorriu para ele e pediu vinho, com os lábios vermelhos. Ora, vinho só o da Santa Missa. Louco de amor, ele não pensou duas vezes: roubou o vinho sagrado e assim, bebendo e amando, eles passaram a noite. No outro dia, o sacristão não prestava para nada. Mas, quando chegou a noite, tudo se repetiu. E assim foi até que os padres finalmente desconfiaram e numa madrugada invadiram a cela do sacristão. A princesa moura transformou-se em Teiniaguá e fugiu para as barrancas do rio Uruguai, mas o moço, embriagado pelo vinho e de amor foi preso e acorrentado. Como o crime era horrível - contra Deus e a Igreja! - foi condenado a morrer no garrote vil, na praça, diante da igreja que ele tinha profanado. No dia da execução, todo o Povo se reuniu diante da igreja de São Tomé. Então, lá das barrancas do rio Uruguai a Teiniaguá sentiu que seu amado corria perigo. Aí, com todo o poder de sua magia, começou a procurar o sacristão abrindo rombos na terra, um valos enormes, rasgando tudo. Por um desses valos ela finalmente chegou à igreja bem na hora em que o carrasco ia garrotear o sacristão. O que se viu foi um estouro muito grande, nessa hora, parecia que o mundo inteiro vinha abaixo, houve fogo, fumaça e enxofre e tudo afundou e tudo desapareceu de vista. E quando as coisas clarearam a Teiniaguá tinha libertado o sacristão e voltado com ele para as barrancas do rio Uruguai. Vai daí, atravessou o rio para o lado de cá e ficou uns três dias em São Francisco de Borja, procurando um lugar afastado onde os dois apaixonados pudessem viver em paz. Assim, foram parar no Cerro do Jarau, no Quaraim, onde descobriram uma caverna muito funda e comprida. E lá foram morar, os dois. Essa caverna, no alto do Cerro, ficou encantada. Virou Salamanca, que quer dizer "gruta mágica", a Salamanca do Jarau. Quem tivesse coragem de entrar lá, passasse 7 Provas e conseguisse sair, ficava com o corpo fechado e com sorte no amor e no dinheiro para o resto da vida. Na Salamanca do Jarau a Teiniaguá e o sacristão se tornaram os pais dos primeiros gaúchos do Rio Grande do Sul. Ah, ali vive também a Mãe do Ouro, na forma de uma enorme bola de fogo. Às vezes, nas tardes ameançando chuva, dá um grande estouro numa das cabeças do Cerro e pula uma elevação para outra. Muita gente viu.
Nos sete povos das Missões, no Pirapó, ainda no tempo dos padres jesuítas, vivia um índio muito triste, que se escondia de tudo e de todos pelos matos e peraus. Era um verdadeiro fantasma e por isso era chamado de Angoéra (fantasma, em guarani). E fugia da igreja como o diabo da cruz! Mas um dia a paciência dos padres valeu mais e o Angoéra foi batizado, convertendo-se à fé cristã e deixando de vagar pelos rincões escondidos. Recebeu o nome de Generoso e tornou-se alegre e bom, mui amigo de festas e alegrias. E um dia morreu, mas sua alma alegre e festeira continuou por aí, até hoje, campeando diversão. Onde tenha um fandango, lá anda rondando a alma do Generoso. Se rufa uma viola sozinha, é a mão dele. Se se ouve uma risada galponeira ou se se levanta de repente a saia de alguma moça, todos sabem - é ele. Quando isto acontece, o tocador que está animando a festa deve cantar em sua homenagem: "Eu me chamo Generoso, morador de Pirapó. Gosto muito de dançar com as moças, de paletó".
O Caverá é uma região na fronteira-oeste do Rio Grande do Sul, ouriçada de cerros, que se estende entre Rosário do Sul e Alegrete. Na Revolução de 1923, entre os maragatos (os revolucionários) e os chimangos (os legalistas) o Caverá foi o santuário do caudilho maragato Honório Lemes, justamente apelidado "O Leão do Caverá". Diz a lenda que a região, no passado, era território de uma triba dos Minuanos, índios bravios dos campos, ao contrário dos Tapes e Guaranis gente mais do mato. Entre esses Minuanos, destacava-se a figura de Camaco, guerreiro forte e altivo, mas vivendo uma paixão não correspondida por Ponaim, a princesinha da tribo, que só amava a própria beleza... Os melhores frutos de suas caçadas, os mais valiosos troféus de seus combates, Camaco vinha depositar aos pés de Ponaim, sem conseguir dela qualquer demonstração de amor. Um dia, achando que lhe dava uma tarefa impossível, Ponaim disse que só se casaria com Camaco se ele trouxesse a pele do Cervo Berá para forrar o leito do casamento. O Cervo Berá era um bicho encantado, com o pelo brilhante - daí o seu nome. O mato era dele: Caa-Berá, Caaverá, Caverá, finalmente. Então Camaco resolveu caçar o cervo encantado. Montando o seu melhor cavalo, armado com vários pares de boleadeiras, saiu a restrear, dizendo que só voltaria depois de caçar e courear o Cervo Berá. Depois de muitas luas, num fim de tarde ele avistou a caça tão procurada na aba do cerro. O cervo estava parado, cabeça erguida, desafiador, brilhando contra a luz do sol morrente. Sem medo, Camaco taloneou o cavalo, desprendeu da cintura um par de boleadeiras e fez as pedras zunirem, arrodeando por cima da cabeça. Então, no justo momento em que o Cervo Berá deu um salto para a frente quando o guerreiro atirou as Três Marias, houve um grande estouro no cerro e uma cerração muito forte tapou tudo. Durante três dias e três noites os outros índios campearam Camaco e seu cavalo, mas só acharam uma grande caverna que tina se rasgado na pedra dura do cerro e por onde, quem sabe, Camaco e seu cavalo tinham entrado a galope atrás do Cervo Berá para nunca mais voltar.
Contam os índios que, há muito tempo, numa tribo do sul do Brasil, um jovem se apaixonou por uma moça de grande beleza. Melhor dizendo: apaixonaram-se. Jaebé, o moço, foi pedi-la em casamento. O pai dela perguntou: - Que provas podes dar de sua força para pretender a mão da moça mais formosa da tribo? - As provas do meu amor! - respondeu o jovem. O velho gostou da resposta mas achou o jovem atrevido. Então disse: - O último pretendente de minha fila falou que ficaria cinco dias em jejum e morreu no quarto dia. - Eu digo que ficarei nove dias em jejum e não morrerei. Toda a tribo se espantou com a coragem do jovem apaixonado. O velho ordenou que se desse início à prova. Enrolaram o rapaz num pesado couro de anta e ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado. A jovem apaixonada chorou e implorou à deusa Lua que o mantivesse vivo para seu amor. O tempo foi passando. Certa manhã, a filha pediu ao pai: - Já se passaram cinco dias. Não o deixe morrer. O velho respondeu: - Ele é arrogante. Falou nas forças do amor. Vamos ver o que acontece. E esperou até até a última hora do novo dia. Então ordenou: - Vamos ver o que resta do arrogante Jaebé. Quando abriram o couro da anta, Jaebé saltou ligeiro. Seu olhos brilharam, seu sorriso tinha uma luz mágica. Sua pele estava limpa e cheirava a perfume de amêndoa. Todos se espantaram. E ficaram mais espantados ainda quando o jovem, ao ver sua amada, se pôs a cantar como um pássaro enquanto seu corpo, aos poucos, se transformava num corpo de pássaro! E exatamente naquele momento, os raios do luar tocaram a jovem apaixonada, que também se viu transformada em um pássaro. E, então, ela saiu voando atrás de Jaebé, que a chamava para a floresta onde desapareceu para sempre Contam os índios que foi assim que nasceu o pássaro joão-de-barro. A prova do grande amor que uniu esses dois jovens está no cuidado com que constroem sua casa e protegem os filhotes. E os homens amam o joão-de-barro porque lembram da força de Jaebé, uma força que vinha do amor e foi maior que a morte.
Quando a Sagrada Família fugia para o Egito, com medo das espadas dos soldados do rei Herodes, muitas vezes precisou se esconder no campo, quando os perseguidores chegavam perto. Numa dessas vezes, Nossa Senhora, escondendo o Divino Piá, pediu a todos os bichos que fizessem silêncio, que não cantassem, porque os soldados do reii podiam ouvir e dar fé. Todos obedeceram prontamente, mas o Quero-quero, não: queria-porque-queria cantar. E dizia: Quero! Quero! Quero! E tanto disse que foi amaldiçoado por Nossa Senhora: ficou querendo até hoje.
O Umbu é uma árvore grande e folhuda que cresce no pampa. Muitas vezes é solitária, erguendo-se única no descampado e atrai os campeiros, os tropeiros, os carreteiros que fazem pouso sob sua proteção. O tronco do Umbu é muito grosso, as raízes fora da terra são grandes, mas ninguém usa a madeira da árvore - não serve para nada, mesmo. É farelenta, quebradiça, parece feita de uma casca em cima da outra. Por quê? Pois não vê que quando Deus Nosso Senhor criou o mundo, ao fazer as árvores perguntava a cada uma delas o que queria na terra. A laranjeira, o pessegueiro, a macieira, a pereira e assim por diante, quiseram frutos deliciosos. O pau-ferro, o angico, o ipé, o açoita-cavalo, a guajuvira, pediram madeira forte. - E tu, Umbu, queres também frutos doces e madeira forte? - Nada, Senhor. - respondeu o Umbu. - Eu quero apenas folhas largas para as sesteadas dos gaúchos e uma madeira tão fraca que se quebre ao menor esforço. - A sombra, Eu compreendo - disse o Senhor. - Mas porque a madeira fraca? - Porque eu não quero que algum dia façam dos meus braços a cruz para o martírio de um justo. E Deus Nosso Senhor, que teve o filho crucificado, atendeu o pedido do Umbu.
No tempo dos Sete Povos das Missões, havia um índio velho muito fiel aos padres jesuítas, chamado MBororé. Com a chegada dos invasores portugueses e espanhóis, os padres precisaram fugir levando em carretas os tesouros e bens que pudessem carregar. Assim, amontoaram o muito que não podiam levar consigo – ouro, prata, alfaias, jóias, tudo!- e construíram ao redor uma casa branca, sem porta e sem janela. Para evitar a descoberta da casa pelo inimigo e o conseqüente saqueio, deixaram o velho índio fiel MBororé cuidando, com ordens severas de só entregar o tesouro quando os jesuítas voltassem às Missões. Mas os jesuítas nunca mais voltaram. Com o passar dos anos, o velho índio morreu e o tempo foi marcando tudo, deixando as ruínas de pé como as cicatrizes de um sonho que acabou. Acabou? Não. A Casa de MBororé continua lá num mato das Missões, imaculadamente branca, cuidada pela alma do índio fiel que ainda espera a volta dos jesuítas. Às vezes, algum mateiro –lenhador ou caçador- dá com ela, de repente, num campestre qualquer. Imediatamente dá-se conta de que é a Casa de MBororé, cheia de tesouros. Resolve então marcar bem o local para voltar com ferramentas e abrir a força a casa que não tem porta nem janela. Guarda bem o lugar na memória pelas árvores tais e tais, pela direção do sol e coisas assim. Sai, volta com ferramentas, só que nunca mais acha de novo a Casa Branca de MBororé, sem porta e sem janela.”
A primeira tentativa dos padres jesuítas, que resultou na fundação de 18 Povos Missioneiros no Rio Grande do Sul, deu em nada. Os bandeirantes de Piratininga, que haviam arrasado as reduções do Guairá caçando e escravizando índios para a escravidão das lavouras de cana-de-açúcar de São Paulo e Rio de Janeiro, quando souberam que os padres tinham vindo mais para o sul e erguido suas aldeias no Tape, vieram aqui fazer o que sabiam fazer. Assim e aos poucos, os padres tiveram que refluir para o oeste, fazendo agora na volta o mesmo caminho que tinham feito na vinda. E nessa fuga tratavam de levar consigo tudo o que podiam carregar. O que não podiam, queimavam ou enterravam. Casas, plantações, até igrejas foram incendiadas, para que nada ficasse ao emboaba agressor. Pois diz-que numa dessas avançava pelo Planalto, no rumo da Serra, uma carreta carregada de ouro e prata, fugindo das Missões. Ali vinha a alfaia das igrejas, candelabros, castiçais, moedas, ouro em pó, um verdadeiro tesouro cujo peso faziam os bois peludearem. Com a carreta, alguns índios e padres jesuítas e atrás deles, sedentos de sangue e ouro, os bandeirantes. Ao chegarem às margens de uma lagoa, não puderam mais. Desuniram os boise atiraram a carreta com toda a sua preciosa carga na lagoa, muito profunda. E vai então os padres mataram os índios carreteiros e atiraram os corpos n'água, para que não contassem a ninguém onde estava o tesouro. Com o sangue dos mortos, a lagoa ficou vermelha. E lá está, até hoje. Ao seu redor, cresceu uma bela cidade, que tomou seu nome - Lagoa Vermelha. E cada que um dos seus moradores passa na beira das águas coloradas, lembra que ali ninguém se banha, nem pesca, e segundo a tradição, a lagoa não tem fundo. E nas secas mais fortes e nas chuvaradas mais brabas, o nível da lagoa é sempre o mesmo.
*Retiradas do site Lendas Gaúchas