*Ao lado do nome, coloque também sua cidade!

Os últimos carreteiros  

Os Últimos Carreteiros
Revista Ícaro Brasil, julho/1997
textos de Carlos Moraes
fotos de Lalo de Almeida


Nas cercanias da cidade de São Gabriel, em plena campanha gaúcha, há um pouso de carreteiros, dois modestos galpões de madeira e, atrás, um pasto para os bois. Na já fria e completamente estrelada noite de maio, um grupo deles, Adão, Atos, Sérgio, Polaco, mateia em torno de um fogo de chão onde borbulha, literal, um arroz-de-carreteiro. Eles chegaram de tardinha dos distritos de Vista Alegre, Caiboaté, Lagões, onde sobrevive o último núcleo de carreteiros do Brasil, talvez do mundo.

Há séculos eles transportam e comercializam na cidade o que produzem em seus minifúndios: batata, laranja, amendoim, melancia, moranga, charque, ovos e galinhas. Levam quase três dias para percorrer os 45 quilômetros de estrada ruim. São, todos eles, filhos, netos e bisnetos de carreteiros. Provêm, todos eles, de uma dinastia carreteira que ali se estabeleceu no tempo dos primeiros povoadores, e cujo patriarca é um certo Langerdoff, que foi misturando seu sangue com os Lima, os Carvalho, os Oliveira.

Mas, na verdade, esses homens que agora mateiam em silêncio ao redor do fogo vêm de muito mais longe. Contemporânea da invenção da roda, a carreta de boi é o mais antigo meio de transporte que se conhece. Há registros dela na Suméria; três mil anos antes de Cristo, no lendário Vaie do Indo, na Índia Antiga, e também entre assírios, egípcios e babilônios. Amaxa para o gregos, plaustrum para os romanos, citada na Guerra de Tróia, nem Moisés a dispensou durante o êxodo do seu povo. Na China da dinastia Tang, séculos VII a IX da nossa era, ela já aparece de rodas raiadas como hoje, trazendo as últimas novidades da Pérsia e da Índia.

Em 444 antes de Cristo escrevia na Grécia o grande estadista Péricles: "Para o transporte de carretos e objetos tivemos necessidade, por mar, de marinheiros e pilotos e, por terra, de carreteiros e carpinteiros de carretas..." Interessante essa analogia entre marinheiros e carreteiros porque muitos séculos depois um poeta de São Gabriel, Edilberto Teixeira, vê as carretas como caravelas de zinco singrando no mar do pampa. Mais de 24 séculos separam as duas escrituras, mas o arroubo do poeta gaúcho tem bons fundamentos na realidade.

Historicamente, as carretas cumpriram em terra o papel dos primeiros navios no mar. Consta de todos os documentos, em todos os quadrantes: foi de carreta de boi que, por terra, a humanidade foi em frente, riscou os primeiros caminhos deste mundo. Em matéria de carros, ela pode ser considerada, sem retórica nenhuma, a grande off-road dos séculos, a mais radical e de melhor currículo, e os mais valentes fora-de-estrada modernos a homenageiam sem saber quando, com diferentes matizes, ligam seus nomes ao verbo desbravar: Pathfinder, Land Rover, Blazer, Explorer, Discovery...
Na última metade do século passado e princípios deste, os historiadores vêem o pampa gaúcho como um autêntico formigueiro de carretas de boi. Em 1875, com a inauguração do novo porto em Pelotas, passaram pela ponte Santa Bárbara 6.574 carretas. Em 1907 a intendência de Bagé registrava 366 carretas lotadas na comarca. Havia, nas cidades nascentes, além de uma praça própria para descarga de produtos, toda uma política da carreta, com taxas, código de posturas, ruas e horários bem definidos. Visitantes estrangeiros admiravam-se de ver comboios de dez, 12 carretas recortando a monotonia do pampa, carregadas de todo tipo de mercadoria. De carreteiros mais bem sucedidos surgiram as famílias dos maiores fazendeiros gaúchos. Dizia-se que um moço com uma carreta e quatro juntas de bois já podia casar. Meninos amarravam bois de sabugo numa caixa de sapato e orgulhosamente brincavam de carreteiros. Era a glória da carreta.

Revendo a história da época, como fez Osório Santana Figueiredo, um sólido pesquisador de São Gabriel, o tempo inteiro, na paz e na guerra, a presença da carreta de boi é registrada. Valentes, serviçais, foram trem de carga e casa de família, farmácia de remédios e paiol de munições, loja de bugigangas e carro de defunto, quartel-general e bolícbo, presídio e prefeitura, capela e prostlbulo. Durante a Guerra dos Farrapos, até mesmo a imagem do poeta, "caravelas de zinco", teve sua hora da verdade. Quando Garibaldi quis transportar dois lanchões da Lagoa dos Patos para a lagoa do rio Tramandaí, valeu-se de duas carretas de boi puxadas, cada uma, por 50 juntas. Duzentos bois puxando dois barcos por mais de cem quilômetros campo afora. Nem o Fellini de sempre nem o Herzog de Fitzcarraldo gostariam de ter perdido a cena.
Esta noite, mateando, os carreteiros falam pouco em volta do fogo. Amanhã cedo estarão pelos bairros da cidade, carreta puxada só por uma junta, vendendo o que o EI Nino permitiu que trouxessem desta vez, batata, ovos, um pouco de charque.
Anos atrás eram uns 70, chegaram até a formar uma associação. Hoje são, se tanto, a metade. Viajam sempre juntos, em grupos de quatro, cinco. Bem menores que as antigas, essas carretas de duas rodas ainda conservam o clássico estilo pampeano. o toldo é de zinco, mas já foi de couro ou guinchado de santa-fé. Os bois são controlados carinhosamente pelo próprio nome, Pintassilgo, Malacara, Parecido, ou vigorosamente pela aguilhada, vara comprida com ponta de ferro. os homens dormem ao relento, entre o poncho e os pelegos, sob a carreta. Duas figuras obrigatórias nessas carreteadas: o cão, ou guaipeca, e o piá carreteiro, o menino para os pequenos serviços, o grumete do navio. Em tupi-guarani, piá tem um bonito significado. Quer dizer, ao mesmo tempo, filho e coração.

Esses carreteiros ao redor do fogo sabem que, entre os 60 mil habitantes de São Gabriel, contam com amigos e críticos, Para s críticos a carreta de boi não passa de uma lenta obsolescência que insiste em atrapalhar o trânsito. Entre os amigos, há pessoas ilustres. O historidor Osório Figueiredo, autor de Carreteadas Heróicas, que acompanha o tranco das carretas desde os vales do Eufrates até os pampas de São Gabriel.

Um vereador, Idalino Soares, que há anos peleia por seus amigos, mas reconhece que suas cansadas lavouras seculares estão a ponto de não mais justificar essas carreteadas, já meio heróicas. Um jornalista corajoso, Valdir Borin, que conviveu meses com os carreteiros e dessa experiência saiu com emocionado vídeo. E ainda o já citado poeta Edilberto Teixeira, recentemente falecido, autor de São Gabriel das Carretas e O ABC da Carreta. Num dos seus mais belos poemas, ele fala que a história é como o gemido da carreta que vai deixando um lamento de saudade na memória dos velhos e uma ânsia de horizontes no coração dos moços. Esse gemido das carretas estrada afora muito tem esporeado a imaginação dos poetas.

Numa de suas músicas, o argentino Atahualpa Yupanqui canta que não precisa de silêncio porque já não tem em que pensar, por isso os eixos da sua carreta nunca vai engraxar. já para outro poeta gaúcho, Mozart Pereira Soares, a função desse gemido foi ir acordando, mundo afora, caminhos adormecidos.

Tanto o poeta Edilberto como o historiador são netos e filhos de carreteiros. Valdir Borin conta que um médico pediu para ver seu video e chorou solto durante a projeção: "Nem meus filhos sabem, mas eu fui carreteiro". Parece que, nessa região, ter carreteado é um atributo de brava nobreza crioula. O carreteiro sempre foi ali um símbolo de coragem e paciência, sábio laboriosamente formado na chuva e no sol de estradas virtuais, em léguas de solidão.

Hoje é uma vida cada vez mais DIFÍCIL. Mesmo neste belo e PREMONITÓRIO ensaio do fotógrafo Lalo de Almeida, os carreteiros, ponchos ao vento, longas aguilhadas para tocar os bois, bem lembram o que se tornaram, quixotes meio perdidos na neblina dos tempos. Tanto que eu crio coragem e pergunto, ali na beira do fogo, se eles não trocariam suas carretas por outro tipo mais moderno de transporte.

Soube depois que um prefeito propôs que vendessem todos os seus bois, comprassem um caminhão coletivo que ele, prefeito, garantiria para todos o melhor ponto-de-venda no Mercado Municipal. Eles se recusaram. As razões não ficaram claras. Talvez pelo orgulho de controlar plenamente seu modesto ciclo de sobrevivência; afinal eles ainda plantam, transportam e comercializam seus próprios produtos. Talvez pela obscura consciência de que são, apesar de tudo, os últimos depositários de um meio de transporte que, da Mesopotâmia a Vista Alegre, Caiboaté, Lagões, vem rodando os séculos.

Por isso eu já me arrependo de ter feito a pergunta. Por isso eles atiçam o fogo, conferem a panela, me passam um mate e, dignamente, nem respondem.

Crédito: Página do Gaúcho